quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Memória Básica

Era viciada em ser sexy.
O mais obviamente sexy possível.
Tinha conjuntos de lingerie matadores: um cor de pérola, um verde mato e um vermelho cereja. Tinha um tamanquinho de salto com plumas rosas, também, cara de puta chique. Só usava em datas especiais, assim como o corpete preto estilo dançarina do Moulin Rouge. Maior xodó. Seu sonho, aliás, era colocar um trapézio no meio do quarto para se fingir de Satine.
Tudo para ele.
Ela tomou aulas de dança do ventre.
Frequentou uma academia de flamenco. Pediu até para uma amiga que ia de férias para Espanha lhe trazer um par de castanholas.
Aí fez um curso de streap-tease on line. Estudou tango. Charlestone. Lap-dance. Poli-dance.
Tudo, tudinho para ele.
Ele?
Gostava, né. Se sentia todo especial quando ela armava uma produção dessas. E de surpresa, ainda, nossa, loucura total! Mas, mesmo cuidando para não parecer desfeita, ficava esperando que tudo chegasse ao fim para poder se enrolar com ela num cobertor, de onde pretendia não sair até a manhã seguinte.
Fato é que ela nunca prestou muita atenção no que ele achava. Vício é vício e o dela era ser sexy. Tanto que quando ele vinha, ela escondia, no fundo do guarda-roupa, a manta velha e cheia de bolinhas que atrapalhava a sua performance. E não é que mesmo assim ele a encontrava? E os dois acabavam sempre enrolados nela, maculando a cama de lençóis de seda perfumados que ela tinha selecionado especialmente para aquela noite de prazer.
Um dia, apesar de todas as plumas, de todas as transparências, de todas as rendas e cetins; apesar da música árabe e da produção com cara de mil e uma noites; apesar do arranjo da melodia japonesa e do seu belíssimo quimono de gueixa naquela noite regada a sakê; apesar do livro do Kamasutra na cabeceira, dos óleos, das massagens eróticas, das ostras e dos morangos com champanhe... Um dia, o relacionamento acabou. E foi num dia qualquer, sem produção nenhuma, na padaria, em frente a um pão na chapa e a um pingado.
Então ela maldisse todas as quinquilharias étnicas do seu guarda-roupa, todas as apostilas xerocopiadas dos cursos de sexo tântrico, todas as receitas de poções afrodisíacas e todos os endereços das melhores lojas de lingerie de São Paulo. Não precisava mais daquilo, daquele maço de canela em pau que não servia nem pra quentão, daquelas pétalas de rosas ressecadas que de bálsamo para banhos excitantes só serviriam pra juntar mofo, daquela porcaria daqueles conjuntos matadores que ela não usaria com mais ninguém, nunca mais, porque então ela odiava todos os homens do planeta.
Vestia suas calcinhas de algodão, sua camisola de flanela, sua pantufa do Garfield, tomava uma canja de galinha para levantar o espírito e se enrolava no cobertor velho. Era assim que ela pretendia viver sem ele: de pijama. E lá ela ficaria até o mundo acabar. Estava cansada, muito cansada de ter sido tão sexy à toa.
Ele, depois de um tempo, já não se recordava muito bem daquelas noites customizadas nas quais ela se transformava numa criatura quase inventada. Ele se esqueceu da gueixa e mal se lembrava do dia dos namorados ao lado da “odalisca”.
Se lembrava, sim, daquelas poucas coisas deliciosamente imperfeitas sobre ela. Do nariz vermelho quando a rinite atacava - e ela espirrava dezessete vezes seguidas. Daquela madrugada fria, quando ele chegou de viagem e ela abriu a porta do apartamento com uma camiseta da “Hard Rock – Orlando” que deveria ter no mínimo dezesseis anos, das meias de lã alaranjada de elástico frouxo e de uma calcinha de algodão cor de rosa que ela só usava “naqueles dias” – durante os quais, aliás, ele não era bem-vindo. Ah, e o cheiro do xampu no seu cabelo ainda úmido? Ela escovando os dentes. Ela com soluço. Ela fazendo uma baliza. Ela varrendo um copo quebrado. Era dessas coisas prosaicas que sua memória se alimentava. Era uma memória nua, do tipo que ele gostaria de poder enrolar num cobertor.
Não era uma memória de seda, nem de cetim, nem de plumas, nem de véus.
Era uma memória básica, de algodão. Tão simples e tão sincera quanto uma Hering velha que ele havia deixado para sempre em uma gaveta na casa dela.
Gaveta, aliás, onde ela guardava seus conjuntos de lingerie.
Aqueles matadores, perfeitos e esquecíveis.


[Cléo Araújo]

0 sentimentos:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sentimentos Soltos

Template by:
Free Blog Templates