quinta-feira, 6 de setembro de 2012

...Há formas subjetivas de amar, não refletidas em gestos ou sacrifícios
São formas egoísticas, talvez. Nem por isso menos válidas.
Aquele silêncio, por exemplo, em casa, com a mulher (ou com o marido), com a mãe ou com o pai. Aquele silêncio machuca quem nos espera alegres, faladores, contando as batalhas e peripécias da vida. E, no entanto, cheios de coisas para contar, nada sai. Ou sai pouco. “Sins”, “Nãos”, frases sintéticas, e um ar irritado, pressa para acabar o assunto. Parece desamor. E de fato é egoístico. Mas é preciso aceitar que há ou pode haver uma forma especial de amor naquele silêncio, naquela irritação. No exercer- exatamente ali - aquele tédio e aquele cansaço.
Ouso uma tradução para aquele silencio: “Minha mulher, ou meu marido, ou minha amante, ou minha amada, ou minha namorada, ou minha mãe ou meu pai ou avô, tio, avó, sogra etc.: eu a/o amo tanto, que a você eu posso entregar o meu cansaço, o meu silêncio, a minha necessidade de ficar um pouco calado, nada contar, não falar, não ser solicitado. Eu estou aqui a seu lado como quem pede socorro em silêncio, na suposição e esperança de que aqui ninguém exija que eu fale, conte ou me defenda, que eu seja brilhante, que eu seja bom etc.. Eu vim aqui homenagear você e o seu amor com o meu silêncio, o meu cansaço e o meu egoísmo, porque você saberá entendê-los.
Esta é a tradução que sugiro para tanto vazio que parece desamor. Somos capazes de fazê-la a cada situação real de silêncio do outro que nos soa a desamor ou rejeição?
Pelo menos cinqüenta por cento dos problemas e sentimentos de rejeição derivam da má tradução de certas atitudes que parecem indiferença ou desamor. É por dar ao outro a certeza de que nos sabemos amados e queridos que nos sentimos autorizados a ser chatos, cansados, entediados, silenciosos e egoístas com ele para que parceiro/a ou parente ou amigo tenha a certeza do que nós sentimos por ele e de que o amamos. Com quem nos ama sentimo-nos à vontade para exercer nossos impulsos menores, desprezíveis ou primários.
Injusto? Claro que é! Justamente quem nos ama, por suas carências e necessidades, talvez seja quem mais precise do nosso gesto, afeto, ou palavra. Ao reagirmos assim, estamos esquecendo das necessidades daquele que nos ama. E se ele é do mesmo estilo(mais sentimento do que gesto) vai entender. Mas se é do estilo inverso (gesto e atitudes que concretizem os sentimentos) acabará em cobrança, por que ele quer receber da mesma forma pela qual doa. E não recebe.
Amor e amizade são relações feitas e alimentadas de injustiças superadas. É impossível a permanente coincidência de necessidades complementares.
Uma das percepções mais difíceis é a da dimensão do amor do outro por nós, numa medida em que nem ele próprio percebe. É preciso aprender a se relacionar com essa dimensão oculta, para não ficarmos infelizes com as respostas que não vierem, com os silêncios que substituírem conversas, com as ausências e egoísmos que nos rejeitarem.
O ser humano (estranhamente) comporta-se de forma pior com quem gosta, porque quem gosta acaba compreendendo. É preciso desenvolver o senso de percepção do sentimento por nós, não manifestado pelo outro. É mister buscar ou captar esse sentimento no desvão onde vive escondido ou no silêncio no qual se disfarce.
Há pontos do sentimento por nós ou do nosso sentimento pelo outro que não precisam ficar claros para existir. Eles existem a despeito. Quem sente o silêncio, o tédio, o cansaço e o desabafo do ente querido precisa começar a descobrir o que se agita, esconde ou emociona dentro da atitude que o fere. Ou se sabe, tem grande dificuldade de transformar em gesto (o gesto que faz tanta falta a quem dele necessita) tudo o que sente.
É preciso enorme compaixão e incomensurável carinho por todos que nos doam o seu amor através da esperança de que sejamos suficientemente fortes para receber e aceitar o seu silêncio, o seu cansaço, o seu tédio e a sua depressão. O enigma do amor inibido de manifestar-se não é simulacro de desamor, tédio ou antipatia, quando é, apenas, atrofia da expressão amorosa, limitação inexplicável mas insidiosa de quem ama sem saber amar.

[Artur da Távola in O amor silencioso do livro: Do amor - o ensaio do enigma]

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